O Circo da Última Lona

No tempo em que os circos ainda pareciam mundos perdidos dentro dos mundos, pequenos planetas errantes onde os diferentes se encontravam para fingir que eram iguais, existiu o Circo, e no centro desse universo desgastado de cores pálidas brilhava Luca, o trapezista, que voava não porque queria ser visto, mas porque queria ser amado, e isso, como todos sabem, é um voo mais difícil de manter do que qualquer outro. Luca amava Isadora, e Isadora, como qualquer bela acrobata de cabelos de sombra e olhos de promessa, amava outro, porque assim manda a ordem natural dos corações desencontrados, e o outro era Vicente, o domador de feras, que amava apenas o seu próprio reflexo, polido como o lombo dos leões que mantinha em cativeiro, e não era preciso ser muito esperto para perceber que a paixão de Isadora era um engano, embora o amor tenha a triste qualidade de tornar os olhos míopes e os ouvidos surdos. Era para Baltazar, o anão, que Luca contava os seus desesperos, sentado sobre caixas de madeira onde ainda se liam, em letras gastas, nomes de cidades há muito esquecidas, e Baltazar ouvia tudo com a paciência de quem já viu o bastante para saber que as dores de amor não se curam com palavras, mas nem por isso deixava de aconselhar, talvez para se lembrar de que o amor pode ser uma doença, sim, mas também é uma desculpa para continuar vivo. Baltazar não nascera para o que era, ninguém nasce, dizem, mas poucos são vendidos como peças raras ao capricho de um sultão qualquer que via no pequeno corpo de Baltazar um brinquedo animado, forçado a rir, a dançar, a obedecer, até que um dia, que foi tanto um dia como qualquer outro, decidiu fugir, porque até as gaiolas mais douradas têm ferrugem nas grades, e veio parar à terra dos circos, onde encontrou Rosalina, a mulher barbada, tão diferente de todas que conhecera e, por isso mesmo, a única capaz de amá-lo de verdade, pois Rosalina também sabia o que era ser olhada como aberração antes de ser olhada como pessoa. O Circo era povoado por almas como eles, cada uma com o seu pequeno abismo disfarçado de número de espectáculo, e havia Gaspard, o palhaço triste, que fazia rir os outros para não ter de chorar, abandonado pela mulher que levara os filhos para algum sítio que ele já não queria encontrar, talvez por medo de os ver e descobrir que já não se lembravam do seu rosto, e havia Maurizio, o mágico, sempre a sorrir como quem guarda um segredo demasiado leve para ser confessado, e acreditava, ou fingia acreditar, que um dia faria magia de verdade, não truques de feira, mas autênticos encantamentos capazes de fazer o mundo esquecer-se da sua própria miséria, e talvez fosse por isso que nunca largava aquela pequena pedra azul, que dizia ter vindo de uma estrela, embora ninguém no circo tivesse coragem de lhe chamar mentiroso, porque às vezes a esperança é a única mentira que se deve respeitar. Não se pode esquecer Amira e Sámir, os engolidores de fogo, que se conheceram num porto sujo, de mãos chamuscadas e corações ainda mais queimados, e descobriram, entre línguas de fogo e promessas murmuradas, que o amor também pode ser um incêndio que aquece em vez de destruir, e claro, os Gémeos Espectrais, Lia e Leo, que apareciam e desapareciam entre a multidão como se fossem feitos de neblina, e ninguém sabia bem de onde tinham vindo, embora todos concordassem que eram demasiado jovens para carregarem nos olhos aquele cansaço velho de quem já viu o que não devia.Vendendo algodão-doce e pipocas havia Clara, casada com Alfredo, que não era apenas o dono do circo, mas também o seu apresentador, homem de voz fanhosa e promessas largas, que se pavoneava pelo palco como um rei de papel molhado, mulherengo incansável nas costas de Clara mas medroso dela ao ponto de tremer só de ver-lhe o franzir da testa, sovina com todos e gastador consigo próprio, escondendo os trocados amealhados para os perder depois em jogos de cartas, em copos que nunca matavam a sede, em risos fáceis de mulheres que bem sabiam como lhe virar o bolso do avesso, e que, apesar disso tudo, continuava a ser o rosto do Circo, talvez porque cada reino precisa de um tolo para que o drama se complete. E talvez por isso o Circo parecesse cada vez menos um lugar de encantamento e mais uma lenta agonia vestida de cor, ora, foi neste cenário de sonhos gastos e esperanças adiadas que o desastre começou a acender-se, primeiro como uma centelha imperceptível, depois como um rugido que ninguém poderia ignorar, mas antes que o fogo tomasse o ar e o pano e as almas, é preciso dizer que Luca tentou, com todo o desespero do seu corpo ágil, conquistar Isadora, multiplicando os saltos mortais, aumentando os riscos, flertando com a morte como quem manda flores a quem ama, mas Isadora, cega pelo brilho falso de Vicente, apenas sorria para o domador, deixando Luca a conversar com o vazio, foi numa noite pesada, abafada, com o céu tão baixo que parecia querer beijar a terra de despedida, que tudo aconteceu, Luca, depois de mais uma tentativa humilhante de impressionar Isadora, encontrou Vicente nos bastidores, rindo e bebendo como quem já recebeu o pagamento do mundo, e ouviu, sem querer ouvir, as palavras de escárnio, a confissão de que Isadora não passava de um brinquedo fácil, útil para distrair o velho Alfredo e facilitar pequenos furtos, o que se passou a seguir talvez nunca seja contado com verdade, porque a verdade, como a magia, é uma coisa frágil e moldável, mas sabe-se que Luca, embriagado de dor e raiva, subiu às cordas com uma tocha na mão, talvez para ameaçar, talvez para assustar, talvez para que o mundo visse o que ele sentia por dentro, e um descuido, uma corrente de vento traiçoeira, fez com que a chama saltasse da tocha para a lona, e em segundos o céu de tecido transformou-se num inferno pendurado sobre as cabeças inocentes, gritaram, correram, choraram, mas o fogo, quando decide dançar, não pede licença, e o Circo, que já era feito de sonhos queimados, ardeu em chamas reais até não restar senão cinzas e memórias, o fogo, esse monstro faminto que não distingue sonhos de pesadelos, espalhou-se com uma rapidez que parecia impossível, como se o próprio circo tivesse esperado por aquele momento desde o seu nascimento, esperando por uma faísca que finalmente o libertasse da agonia silenciosa de ser um espetáculo morto, e foi então que todos correram, uns para as portas, outros para os bastidores, e até mesmo aqueles que nem sabiam bem o que faziam corriam, mas, se olharmos bem, a corrida não era tanto para salvar-se da morte como para salvar-se da vergonha de não saber como lutar contra ela, Luca, ainda no trapézio, tentou descer, mas a corda que o sustentava já não tinha o seu brilho e a sua força, agora parecia uma serpente enfurecida, e, ao ver o fogo a consumir a lona que o protegia do olhar de todos, com uma violência digna das suas próprias frustrações, ele soube que a cena que tanto tentara construir, as piruetas no ar e os saltos mortais, não passavam de uma forma patética de se esconder da verdade, e ao descer desajeitadamente, tropeçou nas suas próprias esperanças e, ao chegar ao chão, viu o circo que um dia imaginara ser seu desmoronar-se diante de seus olhos, como um prédio de cartas que se desfez por um simples resfolego de vento, Rosalina, a mulher barbada, gritou pelo anão, pois sabia que ele, sendo pequeno, poderia escapar mais rápido, mas o fogo, como o destino, não era amigo de ninguém, e Baltazar, o anão, que já tinha sobrevivido a um império cruel, não sabia como fugir daquele inferno, e quando o encontrou, estava com Rosalina, e não houve tempo para mais palavras, apenas para gestos de desespero, e mesmo ali, no meio da confusão e da fumaça, os olhos de ambos se encontraram, e souberam que o que mais importava não era salvar-se, mas estar junto, pois, naquelas chamas, a única coisa que ainda restava entre eles era o amor que se podia dar, o único amor que os outros não podiam tirar, o domador de feras, Vicente, que se achava o centro do circo e da sua própria vida, viu o fogo de perto pela primeira vez e percebeu, de uma forma estranha e quase reconfortante, que a sua existência toda, que ele acreditava ser composta de rugidos e olhares sedutores de leões, estava prestes a ser engolida por algo maior que a sua vaidade, tentou organizar os outros, como se fosse um general de um exército que só ele conhecia, mas a própria fumaça lhe tirava a visão e o seu comando não passou de um eco perdido no caos, Vicente, quando se viu rodeado por fogo e escuridão, percebeu, de forma tardia, que não eram os leões que ele dominava, mas a sua própria ilusão de ser o senhor do mundo, Gaspard, o palhaço, perdeu a sua máscara de risos forçados e foi engolido pelo pânico, pois a vida dele sempre fora feita de risos e piadas que ele não podia mais entender, e agora, à beira da morte, ele só sabia como chorar, mas os outros, confusos e apavorados, olhavam para ele como se fosse parte de um número, e ele, que já não sabia o que era viver sem uma dor disfarçada de comédia, já não sabia o que fazer senão correr para o que lhe parecia mais seguro, que era nada, Amira e Sámir, os engolidores de fogo, sabiam que o seu vínculo com o fogo era tão profundo quanto o amor que se tinha tornado em seus corpos, e ainda assim, não conseguiram domá-lo, mas, ao se olhar nos olhos um do outro, foi como se soubessem, no fundo, que o fogo que os unira agora os separava, e no último gesto, antes de tudo ser consumido, deram-se as mãos, como se se despedissem de um amor que nunca poderia ser, Maurizio, o mágico, não fez nenhum truque, e ninguém o viu desaparecer com a sua pedra azul, porque ele soubera que, em tempos de incêndio, o único truque verdadeiro é a ignorância, e no meio da destruição, não se viu mais nada de magia, apenas o vazio que todos carregavam no peito, os Gémeos Espectrais, que apareciam e desapareciam na multidão, agora eram apenas sombras em fuga, e ninguém conseguiu, no turbilhão de chamas e de pânico, perceber se estavam ali ou se já tinham desaparecido, ou se algum dia tinham existido, mas, se estivessem ali, talvez o fogo os tivesse levado, e talvez fosse essa a verdadeira magia, desaparecer sem deixar vestígios, como o circo que também desapareceu na memória de todos, Clara, a vendedora de algodão-doce e pipocas, ficou ali parada, sem saber o que fazer, porque a avareza é sempre uma prisão e, em momentos assim, ela não soubera o que mais guardar, pois o circo, que ela pensava ser o seu império, se dissolvia no ar como se fosse uma miragem, e o fogo, esse fogo que ela ignorava, agora a queimava com a mesma indiferença com que ela queimava os outros, e não houve mais nada a fazer, nem mais nada a dizer, porque a hipocrisia tem esse poder, queima quem a cultiva, e assim, no meio do fogo, onde as chamas devoravam as esperanças e as lonas antigas do circo, restou a pergunta, como sempre restam as perguntas, de quem foi realmente o responsável, se foi Luca, por sua desesperada tentativa de conquistar uma mulher que jamais o veria como ele queria ser visto, ou se foi o próprio circo, que já estava condenado, como todo lugar que esconde seus fantasmas atrás de cortinas coloridas, ou, talvez, se a responsabilidade fosse apenas uma questão de tempo, como o fogo que sempre chega, sem pedir licença, sem saber por que chegou, apenas chegando, e no final, o Circo não foi mais do que uma memória borrada nas páginas do passado, um lugar onde todos viveram e morreram um pouco mais, mas como o fogo, a memória é breve, e só restam os ecos do que poderia ter sido.

O Circo da Última Lona


Ilustração semeada e colhida no Adobe Firefly

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