Yara esforçava-se com as últimas forças para romper o muro de crianças famintas — todas de braços erguidos, com latas, bacias, sacos estendidos, gritando por comida num coro dissonante de desespero. O caos era absoluto: empurrões, quedas, vozes a rasgar o ar, e uma fome que parecia ter vontade própria, arrastando os corpos para a frente, sempre para a frente…
Há dias que Yara não comia. Às vezes, travava pequenas batalhas com outras crianças por pedaços de pão bolorento, outrora destinados aos animais. Mas agora, nem esses restos existiam. Só ruínas: casas, escolas, hospitais, mesquitas — tudo reduzido a escombros, testemunhos mudos de um mundo que já não era.
As bombas continuavam a cair. Noite após noite. Dia após dia. Yara abrigava-se sob o que restava da parede tombada da sua casa — o seu único refúgio — onde, em tempos, fora amada como todas as filhas merecem ser: por pais que tudo faziam para protegê-la da brutalidade que os cercava. A mãe. O pai. Os três irmãos. Ela, a mais nova, a única menina, com apenas nove anos — o último sopro de uma infância perdida na espiral da fome e da morte.
Yara já não chorava. As lágrimas tinham secado havia muito, como se o corpo compreendesse que já não adiantava. Naquela tarde, no meio do tumulto por comida, conseguiu arrancar um punhado de arroz. Parte caiu no chão, esmagado pelos pés que lutavam por sobreviver. Sem hesitar, ajoelhou-se, colheu os grãos sujos com as mãos e levou-os à boca. Apertava contra o peito magro a pequena bacia com o que restava — uma riqueza frágil e efémera. Correu então para o abrigo, escondeu-se no recanto mais fundo da escuridão e partilhou o pouco que tinha com um velho gato que ali vivia — ou, como ela, apenas sobrevivia.
No seu refúgio, Yara encostou o corpo pequeno e malnutrido à parede fria e tentou fechar os olhos, esforçando-se por ignorar o som distante das bombas — talvez mais um hospital a ruir, talvez mais uma escola a desaparecer. Lembrou-se do pai e dos irmãos, que tinham saído das ruínas da casa a correr, arrastados pela multidão em direcção aos últimos camiões de ajuda, os que conseguiram entrar antes de o exército ocupante fechar a fronteira.
Ela esperara por eles durante horas — talvez dias. Mesmo depois da explosão ali perto, mesmo depois dos tiros, mesmo quando os gritos da mãe, quebrados pelo terror, lhe disseram tudo sem precisar de palavras. No fundo do coração, soubera, desde então, que nunca mais os voltaria a ver.
Mais tarde, a mãe saíra em busca de água — e também não voltou.
Yara ficou sozinha. Dias inteiros sem se mover, encolhida, silenciosa, como se o corpo tivesse esquecido que existia. Só quando a fome e a sede se tornaram insuportáveis é que despertou daquele torpor, rastejando para fora do abrigo, para a lama que outrora fora uma rua e agora era apenas uma faixa indistinta entre ruínas.
Passavam famílias inteiras, espectros em marcha. Carregavam os poucos bens que restavam: carroças improvisadas cheias de mobílias partidas, colchões gastos, sacos de roupas inúteis, puxadas por mulas exaustas. Velhos de olhos vazios, mulheres de rosto coberto, crianças pálidas, cães magros — uma torrente humana movida pelo medo, seguindo numa única direcção.
Yara olhou, esperançosa. Talvez ali estivesse alguém conhecido… alguém.
Mas o que lhe veio à memória foi a imagem do pai do seu melhor amigo, Yusef — Hamed — a correr com o corpo do filho nos braços, retirando-o dos escombros da casa onde tantas vezes tinham brincado juntos.
Aquela casa já não existia. Nem Yusef. Nem o riso.
Na sua mente, assomaram também as memórias da pequena escola onde, por breves dias de paz, aprendera algo que se parecia com alegria. Era um edifício modesto, de paredes gastas e janelas partidas, mas ali dentro havia risos, lápis de cor, e vozes que sonhavam em voz alta.
Lembrou-se de Mariam, que partilhava o lanche escondido com quem tinha fome; de Omar, que desenhava aviões com asas de pássaro e dizia que queria voar para longe dali; de Layla, sempre a cantar baixinho, como se quisesse calar o mundo lá fora; e de Nabil, que decorava poemas e os recitava com o orgulho de um actor num palco de pedras.
Havia também Faris, o mais veloz de todos no pátio, e Salma, que sabia escrever os nomes de todos com letras redondas e certas.
E Rami, seu vizinho, que a ajudava a carregar os livros e fazia caretas sempre que ela chorava.
Aquela escola já não existia. Nem os risos. Mas os nomes, esses permaneciam nela, como restos de sol a brilhar entre os dedos sujos.
Yara fechou os olhos, aninhada no seu abrigo de sombras e silêncio. Deixou que aquelas imagens — os rostos dos amigos, os ecos de um tempo mais leve — lhe aquecessem o peito. Por um instante, sentiu a alma tornar-se leve, como se se desfizesse em luz: quente, silenciosa, bela.
Lá fora, o céu ainda tremia com os ecos da guerra. Mas nada disso lhe tocava já.
Os olhos de Yara — agora fechados para sempre — tinham visto o que muitos escolhem não ver.
Tinham visto a verdade crua: a infância pisada, os afectos perdidos, os corpos pequenos carregados de silêncio.
E o mundo, diante dessa verdade, preferia dizer-se impotente.
Preferia repetir que nada podia fazer — como se isso bastasse para enterrar, com a consciência, todas as outras Yaras de Gaza.
Ilustração semeada e colhida no Adobe Firefly
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